“Glamour Girl”. Esse é o nome do concurso que, indiretamente, viabilizou o início da carreira da mulher que deu rosto e
personalidade ao cinema brasileiro moderno. Helena Ignez venceu a disputa da garota mais glamourosa da alta sociedade
baiana no final da década de 1950. O dinheiro que conseguiu, a partir dessa competição e por meio de contatos que fez
ali, possibilitou a realização do curta O Pátio, que ela protagonizou e que foi também o primeiro filme do seu então
companheiro, Glauber Rocha. O ano era 1959 e marcou o início de um dos momentos mais férteis do cinema nacional.
Helena Ignez nasceu na Bahia em 1939. Estudou direito e trabalhou como colunista social em um jornal de Salvador
durante a juventude. No entanto, abandonou um futuro como advogada para cursar artes dramáticas na UFBA
(Universidade Federal da Bahia).
Como atriz, Ignez desenvolveu um trabalho que passa ao largo do que costuma ser entendido como clássico: seu estilo
experimental fez com que ela criasse um método particular de atuação, afinado com o espírito da cultura do Brasil dos
anos 1960 e 1970. Uma atuação autoral e inovadora, que já chegou a ser classificada como escrachada, verborrágica,
debochada e sem limites.
Dessa criação saíram a pistoleira Janete Jane, de O Bandido da Luz Vermelha (1968, 42ª Mostra), e a ninfomaníaca
Ângela Carne e Osso, de A Mulher de Todos (1969), personagem marcada pela rebeldia e por declarações icônicas, que
costumavam ser proferidas enquanto fumava um charuto. Uma delas é: “Sou simplesmente uma mulher do século 21.
Eu cheguei antes, por isso sou errada assim: o demônio anti-Ocidental”. Nessas obras, ambas dirigidas por Rogério
Sganzerla, Ignez vai além da simples representação. Ela rompe com uma forma realista de atuação, como definiu o
crítico Jean Claude-Bernardet em entrevista ao Itaú Cultural, em 2012.
Na filmografia de Ignez, essas personagens foram precedidas por seu trabalho em longas-metragens que também se
tornaram clássicos brasileiros, como O Padre e a Moça (1966, 30ª Mostra), de Joaquim Pedro de Andrade, e Assalto
ao Trem Pagador (1962), de Roberto Farias. E foram seguidas por sua atuação em filmes de Júlio Bressane e Rogério
Sganzerla, de quem ela foi sócia na efêmera produtora Belair: Barão Olavo, o Horrível e Cuidado Madame, de Bressane,
e Copacabana Mon Amour e Sem Essa, Aranha, de Sganzerla —todos títulos de 1970.
A dissolução da Belair meses após sua criação coincide com a perseguição que o trio passou a sofrer pelos agentes
da ditadura militar. Com o recrudescimento do regime, Ignez e Sganzerla, seu marido, partiram para o exílio em 1970. O
casal retornou ao Brasil dois anos mais tarde, mas viveu discretamente: só voltaram a filmar pouco mais de uma década
depois, em meados dos anos 1980, quando a ditadura começou a abrandar.
Embora tenha sempre reivindicado espaço como cocriadora de uma obra e, muitas vezes, tenha assumido, além do ofício
de atriz, também o papel de produtora, Ignez só assinou a direção do primeiro filme, o média-metragem A Reinvenção
da Rua, em 2003. Desde então, dirigiu tantos outros trabalhos. Entre eles está a continuação do maior clássico de
Sganzerla, Luz nas Trevas: A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010, 34ª Mostra), que tem codireção de Ícaro Martins.
Também realizou o curta A Miss e o Dinossauro (2005), o média Poder dos Afetos (2013, 37ª Mostra) e os longas Canção de Baal (2008, 32ª Mostra), Feio, Eu? (2013, 37ª Mostra), Ralé (2015, 39ª Mostra) e A Moça do Calendário (2017, 41ª Mostra).
Ignez recusa o rótulo de musa, tanto do Cinema Novo, quanto do Cinema Marginal —estereótipo esse que tantas vezes
usaram para defini-la. Em entrevistas, disse que o epíteto, dado por homens, tinha a intenção de agradar, mas que era,
na verdade, uma maneira de calar. “A visão que se tem de musas é a de que não fazem nada, que só inspiram, que são
insuportáveis”, afirmou certa vez à Trip TV.
A cineasta encontra melhor definição no título do documentário sobre a sua vida, dirigido em 2019 pela filha Sinai
Sganzerla: A Mulher da Luz Própria. E é pelo brilho, pela determinação e pela ousadia com que marcou todos os seus
trabalhos, além de exaltar a abundante e excepcional carreira de Helena Ignez, que a 45ª Mostra entrega à atriz, diretora
e produtora baiana o Prêmio Leon Cakoff.